quarta-feira, 6 de maio de 2020

O Dao e a minha caminhada alquímica - post 08 - A sexualidade



Este é um tema muito debatido em todas as esferas, o Daoismo não poderia deixar de o tratar. O que é interessante é que o Daoismo parece ter duas visões distintas sobre a sexualidade. Uns que veem a sexualidade como uma ponte a transformação energética, outros como um furo que nos esgota a energia.

É sem dúvida um tema complexo, cheio de medos, tabus, paranoias e preconceitos. Outra coisa interessante é que o homem, sim sobretudo o homem tem um desejo intrínseco que lhe perturba o discernimento. O desejo sexual que o assola não permite que este tenha uma visão clara e imperturbável sobre o tema. Digo isto porque encontramos, sempre encontrámos espalhado na sociedade, um extremismo generalizado em relação a este tema. Os ferverosos defensores do celibato, afirmando que a sexualidade é um mal do qual nos devemos livrar e os outros que acham ridícula qualquer tentativa de abstinência sexual.

Vou tentar explorar a sexualidade de um ponto de vista Daoista.

"O desejo sexual é uma expressão da abundância de Jing Qi" 

Podemos ver isso facilmente nos jovens quando têm o instinto de se tocar sem sequer saber ainda o que estão a fazer… O homem verifica também isso com a chamada erecção matinal. estas sensações ou comportamentos que vêm de "dentro para fora". Então, quando Jing Qi atinge o seu "pico" a ovulação acontece, e o homem pode libertar sémen. Quando esta energia se encontra em grande quantidade é como um copo cheio de água que facilmente transborda.

A sexualidade no homem torna-se natural e saudável e na mulher (que desgasta o jing de forma cíclica sem envolvimento sexual) todo o seu corpo se apresenta equilibrado e plenamente fértil.

"o desejo sexual é algo de natural e sinal de VITALIDADE"

Na alquimia Daoista, para prolongarmos a vida e alcançarmos a libertação, o Jing é fundamental. Através de práticas específicas, transformamos o Jing em Qi e depois em Shen. Podemos imaginar o jing o gelo, o Qi água e o Shen o vapor de água. Se não houver gelo, é impossível obter água e consequentemente o vapor da mesma… Por isso é fundamental para os Daoistas conservarem o Jing para que todo o processo alquímico possa ocorrer. É na realidade o primeiro passo! Convervar a energia! Não perder….

Sim, porque segundo a filosofia Daoista o Jing pode perder-se, e o desejo sexual pode ser perigoso pois leva o ser humano a ter relações e consequentemente perder vitalidade...

É aqui que começam a surgir correntes diferentes. De certo que muitos já leram sobre sexualidade Daoista (Sou Nü jing é um dos clássicos mais conhecidos), pois é um tema muito estudado e até profícuo para todos nós…

Mas até que ponto a sexualidade é importante no caminho? 


  • Uma corrente diz que podemos atingir a libertação através da sexualidade. Existem inclusivamente seitas Daoistas que fazem uso do formas semelhantes à da prostituição para "adquirir" jing do parceiro e assim poderem desenvolver o seu estado energético. Os homens Dragão de Jade acreditam que através do voyeurismo estimulam o Jing para que depois o possam circular e transformar. A mulher, Tigresa Branca extrai o sémen (Jing) dos diversos parceiros para seu benefício.
  • Outra corrente assemelha-se mais às religiões ocidentais monoteístas em que o celibato é tomado como uma forma importante do caminho. Dá-se muita importância à "poupança" do Jing das mais diversas formas (pois este não se perde unicamente através das relações sexuais, parto ou ovulação), para usá-lo no processo alquímico.

Estas são duas vias que parecem até contraditórias e torna-se um pouco polémico por isso. Mas talvez nem seja...

Há uns anos estudei a sexualidade Daoista e descobri coisas fantásticas. É por isso para mim claro que o trabalho sobre a sexualidade tem os seus reflexos que nos podem inclusive transcender para outros níveis energéticos. Não é coincidência que a sexualidade está também ligada a muitas religiões e cultos… Mas hoje penso de forma ligeiramente diferente, pois a sexualidade mais do que se tratar de gastar, manter ou ganhar Jing é também um momento em que interferimos com o Shen. Se a mente estiver muito fixada na sexualidade (como aqueles que usam a sexualidade para o seu desenvolvimento energético) o Shen fica doente, a moral distorcida e o caminho deixa de ser visível e possível de alcançar. 

Estas nuances, à medida que se caminha, assumem uma importância enorme!

Uma das coisas que aprendi na sexualidade Daoista foi a conservar o Jing, no fundo esse é o primeiro propósito. Podemos fazê-lo através da abstinência ou, mantendo relações mas de forma particular para que o Jing não se perca.

Muitos consideram que isso é apenas (no caso do homem) o chamado coito interrompido, ou até mesmo a separação entre o orgasmo e a ejaculação. A mim parece-me muito mais do que isso. Embora a capacidade de deixar de ejacular mantendo o orgasmo permite ao homem tornar-se capaz de atingir vários orgasmos sem com isto perder sémen, isto diz apenas respeito ao prazer. Não digo que não possa interessar a muitos, mas para aquele que pratica a via do Dao, o caminho não nos leva à busca do prazer sexual, pois busca outra coisa bem diferente. O importante é ele conseguir, segundo a sexualidade Daoista, fazer subir o Jing para o Dantian superior. Esta técnica como podem entender facilmente não se refere a uma subida literal do sémen para o cérebro… Mas sim ao Jing que, na realidade, não é apenas o sémen!. E é aqui que reside o grande "problema" Reduzir o Jing ao sémen ou à ovulação. O jing é muito mais do que isso, encontra-se noutros locais e pode ser trabalhado e afectado de diferentes formas. Mas voltando ao tema, é suposto pôr o Jing a circular pelo Du mai para que possa ascender até ao cérebro. Estas são técnicas violentas e perigosas que podem trazer resultados desastrosos, ou apenas a ilusão de que alguém está a usar o prazer para se iluminar...

Se na alquimia Daoista procuramos o desapego total, se procuramos viver de acordo com a brisa soprada pelo Dao e por isso eliminar a nossa vontade criada para voltarmos ao movimento primordial não podemos seguir a exploração sexual nem nos devemos deixar obcecar pelo celibato. Pois em qualquer uma delas o distúrbio causado pode causar danos irreparáveis...

É muito importante relembrar que buscamos a quietude suprema e a sexualidade facilmente nos leva ao turbilhão emocional. Não é por isso proibido e é aí, que nos vale a sexualidade Daoista. Podemos viver naturalmente a nossa sexualidade de forma ainda mais sensitiva (ao contrário de prazerosa) num plano de quietude. 

Diz-se que a pessoa não deve transpirar, o coração deve permanecer tranquilo e ao terminarmos a relação amorosa devemos-nos encontrar com mais vitalidade.

Se o fizermos então não nos devemos preocupar com mais nada. Devemos continuar o nosso trabalho alquímico e certamente encontraremos frutos ao longo do nosso caminho. À medida que o nosso trabalho for ocorrendo, naturalmente o desejo se irá dissipar (não porque o Jing está esgotado para porque ele circula para o Dantian superior ao invés de ficar "preso" no Dantian inferior). Nesse momento podemos dizer que nos libertámos do nosso "instinto animal e biológico" e que somos sexualmente livres.

Na sexualidade Daoista, a relação é subtil, os sentidos despertam lentamente, os orgasmos ocorrem de forma menos "intensa" mas de forma mais prolongada e profunda, tornando a experiência sexual única. Durante a relação não surgem pensamentos fortes e agressivos, não há agitação mental ao invés é vivida um pura tranquilidade com o parceiro(a), em que são partilhadas sensações. É um acto de contemplação do outro mas também de nós.

A sexualidade deve então ser vivida com naturalidade e ao mesmo tempo analisada. Estaremos a vivê-la de forma tranquila? Será ela fonte de ansiedade, esgotamento ou obcessão? Estará a sexualidade a moldar a minha visão das coisas?

O que é o desejo sexual?

Tenho entendido nos últimos tempos que existem pelo menos duas formas de desejo sexual à qual devemos estar atentos. Porque gosto de por as coisas nestes termos vamos dizer que um desejo é interno e outro externo, yin/yang. Um desejo deve-se à abundância de Jing outro deve-se a condicionantes externas, ao Shen.

Aqui creio que reside uma grande rasteira, talvez o maior perigo de perda de Jing. Será que o impulso sexual que estamos a sentir é verdadeiro ou induzido? Será que ele vem da nossa vitalidade ou dos nossos pensamentos ou provocação de outros? Isto confere toda a diferença.

Quando a energia é exuberante esta manifesta-se… Há vários exemplos deste acontecimento. 

Por exemplo quando temos uma fome extrema em oposição àquele snack que nos cativou ou aquela fatia de bolo que quero tanto... Enquanto no primeiro caso há tanto necessidade do corpo em obter energia como o fogo do estômago se encontra activo (fornecido pelo Chong mai), no segundo caso o corpo não sente necessidade e muitas vezes o fogo do estômago encontra-se até debilitado (sempre que comemos o Qi do estômago desgasta-se e este precisa de tempo para se repor). Então se comermos com fome estamos a respeitar o nosso corpo na integra, se comermos sem fome estamos a atacá-lo e degradá-lo. O mesmo se passa com a sexualidade.

É então fundamental aprendermos a discriminar o desejo interno do externo. O desejo que se desenvolve na pura vitalidade do desejo influenciado por aspectos culturais, imagens mentais e outras influencias ainda mais complexas... Se aprendermos a identificar as diferenças estamos mais perto de continuar a nossa caminhada livre de problemas. Podemos se calhar ver de forma diferente o que foi falado acima. Verificamos com facilidade a subjectividade de muitas coisas. Não basta dizer Sim! celibato ou Não! vamos explorar a sexualidade. A vida está recheada de caminhos tortuosos e é fundamental sermos conscientes, humildes, destemidos e corajosos para que possamos ultrapassar os diversos obstáculos que muitas vezes, só podem ser ultrapassados por nós pois são realidades únicas e que ninguém conhece. Este é outro perigo, tendemos a criar empatia com outras pessoas que vivem "a mesma coisa", mas na realidade são coisas parecidas. Ora, "coisa parecida" é   de "mesma coisa".

Espero, sinceramente que esta publicação tenha contribuído de algum modo que não tenha sido demasiado enfadonha ;)



segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ge Hong, o Mestre da Simplicidade

Dotado de uma extrema humildade, de um profundo conhecimento literário daoista, confucionista e histórico de uma forma geral. Mais do que para o Daoismo em particular, este é um homem muito importante na história da China.

Acredita-se que Ge Hong viveu entre 283e 343 anos D.C. Também conhecido como o Mestre que emana a Simplicidade, Ge Hong foi um Homem muito especial para os seus tempos e ainda para o dias de hoje.

Para conhecer Ge Hong nada melhor do que ler a sua autobiografia disponível no clássico Baopuzi Neipian:

"O meu nome de família é Ge, o meu nome é Hong e o meu segundo nome Zhichuan. Sou de Jurong, na região de Danyang. Um dos meus ancestrais foi um soberano da antiguidade. Quando o seu reino caiu para um principado, o seu nome tornou-se um nome de família, Ge...
Eu sou o 3º filho de meu pai. Tendo nascido mais tarde fui mimado pelos meus pais e não fui forçado a estudar os clássicos muito cedo. Tinha 13 anos quando o meu pais nos deixou e por isso, perdi precocemente os seus ensinamentos. Ameaçado pela fome, frio, miséria e doença fui trabalhar para a agricultura.
Todos os livros do meu pai desapareceram durantes as guerras e incêndios de que fomos vítimas ao longo do tempo e não tinha nada para ler quando chegávamos à estação morta. Eram raras as vezes que me emprestavam algo para ler. Durante o dia eu cortava e vendia mandeira para poder comprar papel e pincéis. De noite, acampando num jardim ou campo, copiava os livros à luz de uma fogueira. Tudo isto fez com que me dedicasse, desde muito cedo à composição literária. Tinha muitas vezes falta de papel, as minhas folhas estavam sempre cobertas de caracteres sobre as duas faces. Era raro que outros para além de mim, conseguissem ler essas folhas."

"Aos 16 anos comecei a lei o clássico da Piedade filial, as ocupações de Confúcio, o livro das Odes e o clássico das Mutações. Mas na minha miséria, não tinha possibilidades de partir para longe à procura de um mestre ou de alguém com quem pudesse debater estes assuntos. Ignorante de tudo, de uma compreensão superficial, as grandes directrizes destas doutrinas escapavam-me frequentemente. Estava, nessa altura ávido por leituras de todo o tipo. E foi assim que chegou a altura em que não havia um livro que não pudesse recitar e compreender no essencial. Tomei conhecimento de cerca de 10 mil rolos, desde os clássicos,  os de histórias e filosofia até alguns textos curtos e variados. Mas tinha uma natureza pouco desperta e esquecia com facilidade; ainda por cima, faltava-me o espírito literário e a minha vontade tinha falhas. Também, o meu saber era insuficiente e por isso, as confusões eram inevitáveis. Estas leituras permitiram, contudo, fazer algumas citações nas minhas escrituras. Mas como nunca fui um verdadeiro letrado, não pude transmitir o conhecimento com mestria."
Este excerto atesta bem o porquê de Ge Hong ser muitas vezes de apelidado do Mestre da Simplicidade. Embora seja ainda hoje reconhecido como um Homem, ele mantinha sobre si, uma humildade poucas vezes encontrada. Era transparente quanto às suas raízes e humilde sempre que assumia qualquer coisa.

Ge Hong escreveu dois livros, O Baopuzi Neipian (tratado esotérico) e o Baopuzi Waipian (tratado exotérico), a Biografia dos Divinos Imortais, a Biografia dos Ermitas. Escreveu também poesia, pensamentos e recitais. Na sua autobiografia ele aprofunda;


"no meu tratado esotérico estão receitas e tratamentos dos Divinos Imortais, transformações dos fantasmas e demónios, arte de cultivar e prolongar a vida e conspirações afim de evitar a doença. Estes pertencem à escola Daoista. O meu tratado exotérico fala do bem e do mal na sociedade dos homens, dos erros e da razão nos negócios do mundo, estes pertencem à escola confucionista."

Quando lemos a sua autobiografia na íntegra, verificamos o extenso conhecimento que este ser humano possuía sobre assuntos Daoistas, Confucionistas, sociais e políticos. Era um homem com um interesse literário enorme, como já descrito por si acima.

Atestando a sua simplicidade e humildade termina a sua autobiografia dizendo:

"Não me consegui elevar à altura da águia e ajudar o meu país, e não passarei como os meus ancestrais ilustres à posteridade. Não posso esperar que os históriadores integros me façam referência, nem esperar pelo meu nome gravado em vasos de bronze. É por essa razão que adicionei esta biografia às minhas escrituras. Não ajudará nada à minha familia ou ao meu sucesso, mas irá permitir a futuras gerações conhecer a minha história"

Se há ensinamento que Ge Hong esse é o da humildade e simplicidade, às vezes parece até tocar a humilhação. Em todos os temas ele está constantemente a relembrar o leitor o quão limitado é nos seus conhecimentos.

Ge Hong foi um homem que fez um estudo exaustivo sobre o Confucionismo e o Daoismo. Como acima referido, estudou o confucionismo sobretudo para entender as relações humanas sobretudo em sociedade e a nível politico. O Daoismo permitiu que tentasse entender, a seu ver sem sucesso, a via dos Divinos Imortais (Imortalidade). As escrituras que deixou são hoje objecto de estudo e são no fundo uma compilação de textos clássicos completada pelas suas reflexões.

Para todos os que se interessam por filosofia e alquimia Daoista, é fundamental conhecer a obra deste Homem tão importante na história Chinesa mas também do Daoismo.