quarta-feira, 9 de abril de 2014

Viver sem competir (parte I)

No Daoismo um dos grandes princípios é o de não competir (Wu Zheng).

No Daoismo o objectivo é encontrar a quietude suprema, eliminar todas as perturbaçoes emocionais, serenar e concentrar a mente. Por isso no Daoismo praticam-se muitas artes que promovem a sereninade de espírito, a contemplação da natureza e a concentração (Qi Gong, Tai ji, meditação).
Não competir ou não tencionar competir, assume por isso um papel muito importante para que o praticante Daoista possa manter o seu espírito equílibrado e em harmonia com o Universo.

No Ocidente, como todos nós, fui desde novo educado para ser o melhor. Enquanto crianças, os nossos pais ficam felizes quando crescemos mais que os outros, quando começamos a andar e a falar mais cedo, quando somos os melhores alunos, etc. Somos educados a pensar que devemos sempre melhorar e que na vida o objectivo é o sucesso, pois só assim poderemos ser felizes.
Para sermos os melhores temos, obrigatóriamente, de ter um termo de comparação. Esse termo de comparação é geralmenteo  que está à nossa volta; colegas de escola e de trabalho, colegas de profissão, ou até nós mesmos... Isto é viver claramente a competir e servir-se desse princípio como estímulo no decorrer da nossa vida.

O problema de viver a competir, é que podemos não aguentar a pressão que isso acarreta. Podemos falhar, não conseguir. Aí entramos num estado de ansiedade e de insegurança permanentes, em que tudo é visto como ameaça. Nesse momento, estamos na mó de baixo, observamos os melhores a congratularem-se enquanto nós nos pressionamos cada vez mais para ultrapassar a situação.

É um dos perigos de viver em permanente competição. Mas há mesmo assim quem viva feliz desta forma (porque nunca tiveram a sorte ou o azar de "perder" nesta vida competitiva). Mas há um outro problema de viver competindo, e este talvez seja mais complicado.
Quando nascemos estamos sempre a olhar para o futuro, o que fazemos amanhã é sempre mais do que fizemos ontem. Nesta altura das nossas vidas, é relativamente simples sermos competitivos uma vez que o nosso corpo está melhor de dia para dia. É por isso natural que eu próprio seja melhor. Mas e quando passamos o nosso auge? Quando o nosso corpo começa a perder resistência física, quando nos começamos a sentir cansados, a perder a memória, a ter dificuldades em manter a concentração, quando as dores nos impossibilitam a execução de determinadas tarefas? Neste momento verificamos que não podemos continuar a viver como sempre vivemos!

Os Daoistas entenderam os mecanismos naturais da natureza, a vida e a morte, o sucesso e o insucesso. E encontraram na espontaneidade, a melhor forma de viver. Os Daoistas apenas fazem aquilo que podem fazer, no momento oportuno e quando as circunstâncias o proporcionam.

Os ocidentais fazem as coisas "quando têm de ser feitas", no prazo exigido seja qual for a condição em que se encontram.

Há aqui uma diferença gigantesca na atitude adoptada! Os Daoistas agem segundo a sua natureza, os ocidentais fazem de acordo com a sua mente. E muitas vezes a mente deixa-se contaminar pelo ego, que por sua vez é muito influenciado por terceiros. Em conclusão, muitas das vezes os ocidentais acabam por fazer coisas que não querem e não deviam fazer, apenas porque lhe é exigido...

Viver no Ocidente enquanto Daoista é um grande desafio, não por ser impossível de praticar a não competição mas fundamentalmente, por sermos incompreendidos e até rejeitados por uma boa parte da sociedade. Muitas pessoas nunca irão entender por que é que nós abdicamos de competir (perdendo sucesso no imediato) e nos focamos no trabalho interno como referência para as nossas vidas.
Há em meu entender, um desafio suplementar no Ocidente, o de conviver com esta indignação por parte da familia, amigos, conhecidos e desconhecidos.

A PRÁTICA
Vivendo no ocidente sem competir

Considero duas formas de não competição; uma interna e outra externa.
Para já falarei da mais fácil de entender, a não competição externa.
Diz respeito ao nosso comportamento em relação com o mundo que nos rodeia.

É geralmente a primeira forma de que tomamos consciência e pela qual começamos o nosso trabalho de transformação.
Comecemos por pensar na relação de forças entre seres humanos, seja esta familiar, social ou profissional.
O mais fácil de avaliar, é a situação profissional. Todos nós queremos ter sucesso profissional, pois isso reflete-se na nossa carteira e consequentemente, pensamos nós, na nossa felicidade. Em função desse sucesso, estamos dispostos a muito. O problema é que não somos os únicos a pensar assim, pois muitos pensam como nós. Acabamos por nos ver no meio de uma corrida em que para tentar ganhar, temos de ir até ao limite, sem que a vitória esteja garantida. Muitas vezes esquecemos que o respeito e a entreajuda são valores fundamentais e estamos dispostos a fazer algumas batotas para poder chegar em primeiro lugar.

Podemos mudar o nosso paradigma ao, simplesmente, focarmo-nos apenas e só no trabalho, sem pensar em tudo o que ele nos pode ou não trazer no futuro. Quero com isto dizer que o pragmatismo é aqui, o nosso melhor amigo. Fazermos o melhor que conseguimos e nada mais que isso, sempre sem deixar que as exigências profissionais nos façam falhar naqueles que são os valores fundamentais para vivermos em harmonia com a natureza.
Então, quando trabalho não devo desperdiçar tempo a pensar se estou ou não a ser melhor que o meu “concorrente”, se estou a ser o mais produtivo da empresa, se o meu cliente estará mais satisfeito comigo do que com o outro comerciante, etc. Devo apenas dar o meu melhor, ficar como costumamos dizer; de consciência tranquila. Desta forma podemos viver em paz, sabendo que estamos a desempenhar as nossas funções da melhor forma possível, quer esta seja a melhor de todas ou não. Para um Daoista não é importante ser-se efectivamente melhor que outra pessoa, pois um Daoista sabe que cada indivíduo tem uma natureza própria que lhe confere qualidades únicas.
 Cada indivíduo tem mais facilidade numas coisas do que noutras, e por isso eu poderei ser melhor numas coisas e menos bom noutras, é a natureza humana. Nesse sentido o Daoista não valoriza esse aspecto e por isso também não compete, apenas aceita a sua natureza e aproveita-se dela para tirar proveito da vida.

O ciúme é uma consequência de um comportamento competitivo, embora possa estar também presente por outras razões. É algo que acontece muito no ambiente familiar e amoroso. O ciúme nas relações pode acontecer porque este gosta mais do outro do que de mim, etc. Estamos já noutro nível de competição, competição dos afectos e das relações.
Mais uma vez devemos encarar as relações de forma natural. 

Uma semente quando pousa na terra não sabe em que solo vai crescer. No entanto cresce, e faz o seu melhor para se transformar numa bonita árvore ou arbusto, ou erva; sem nunca saber quem vai ter como vizinho. Aceita a sua natureza, o seu destino.

Nós deveríamos viver do mesmo modo. Vivemos cobiçando a vida dos outros, as experiências dos outros, queremos sempre mais, vivemos com um vazio permanente no nosso coração.
Se por outro lado aceitarmos a nossa natureza, os nossos “vizinhos”, viveremos de forma mais tranquila e também feliz. Se em vez de sentirmos ciúme ou inveja da relação que o nosso amigo tem com a nossa irmã, simplesmente vivenciarmos a nossa amizade com cada um deles, estaremos certamente a Viver as nossas vidas e a crescer com essas vivências.

Por isso um Daoista é geralmente discreto no seu trabalho, simples na sua forma de se dar com os outros e pouco exuberante no seu comportamento. É difícil encontrarmos um Daoista na sociedade moderna, pois ele não se expõe. Ele vive de forma humilde e apenas aparece quando solicitado.

Não competir implica abdicar de algumas coisas materiais mas também sociais. É certo que não competindo no trabalho é possível que não tenhamos tanto sucesso profissional como outros e consequentemente tanto retorno financeiro e reconhecimento social. Mas também é verdade que não competindo, vivemos de forma mais alegre, transparente e tranquila, com mais saúde e menos preocupação, mais conscientes do presente e menos dispersos no futuro ainda não consumado.


É uma escolha que todos nós podemos fazer. A via do Dao é clara, não competir é um princípio básico para poder alcançar o desejado.

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